
POR UMA PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA
Psicologia e Fenomenologia sempre estiveram lado a lado. Embora não se confundam, caminham por sendas que ora as aproxima, ora as afasta. O “nascimento” da Psicologia moderna, dita científica, costuma ser localizado em fins do século XIX, mesmo que tenhamos argumentos que indiquem para o início do século (Nota 1).
Todavia, a transição de um modelo “abstrato”, em torno das “ideias psicológicas” (Nota 2) – tema constante na Literatura e na Filosofia desde seus primórdios – para um modelo mais “concreto”, passa por um lento afastamento das ideias filosóficas, atravessa a Fisiologia, e encontra seu “rompimento” definitivo (ou sua “independência”), com a fundação dos “Laboratórios de Psicologia Experimental”, que se concretizaram pela incorporação e pela prática do modelo científico-natural direcionado às investigações em psicologia.
Mesmo assim, a institucionalização das disciplinas de Psicologia – arroladas nos cursos de Filosofia, e promovida pela reforma educacional alemã de 1824 – o interesse pela Psicologia, por diversas áreas, não coincide com essa institucionalização experimentalista nem com a profusão de laboratórios. Ainda assim, a aproximação e incorporação do modelo das Ciências Naturais – com ênfase na observação, experimentação e quantificação – fez com que a Psicologia se apresentasse como uma “verdadeira” ciência da consciência, do psiquismo e, posteriormente do comportamento e da cognição.
Vários autores e grandes pensadores da época acompanharam e questionaram esse processo, dentre estes Brentano, Dilthey e Husserl, sendo este último um dos principais críticos à psicologia científica e experimental da sua época, denunciando os sérios problemas epistemológicos inerentes.
Husserl esteve entre os signatários do famoso “Manifesto contra os psicólogos experimentais”, publicado primeiramente na Revista Logos em meados de 1913 e depois em alguns periódicos e jornais alemães (Nota 3). Neste “Manifesto”, o intuito principal era reivindicar a criação de cadeiras de psicologia experimental nos cursos das universidades alemãs, uma vez que os psicólogos experimentais estavam ocupando quase vinte por cento das cadeiras de filosofia.
Husserl é um dos que reconhece que a vida não se restringe a um sentido apenas fisiológico-natural, mas é “vida ativa em vista de fins, realizadora de formações espirituais – no sentido mais lato, na vida criadora de cultura na unidade de uma historicidade” (Nota 4). E, nesse sentido, parece um contrassenso subordinar a vida do espírito à natureza, se a própria vida espiritual é produtora do sentido da ciência e da natureza.
Husserl expõe, discute e analisa os impasses da Psicologia científica, praticamente em toda sua obra, afirmando que somente a partir de uma Fenomenologia Transcendental, seria possível restabelecer um método e um fundamento autênticos para as Geisteswissenschaften – as “ciências do espírito”, ou o que denominaríamos atualmente como “ciências humanas e sociais” – constituindo, assim, uma autêntica Psicologia, ou seja, uma Psicologia Fenomenológica.
[...] Ao mesmo tempo em que a fenomenologia filosófica, mas sem se distinguir a princípio dela, surgiu uma nova disciplina psicológica paralela a ela, quanto ao método e ao conteúdo: a psicologia apriorística pura ou “psicologia/fenomenológica”, na qual, com um afã reformador, pretende ser o fundamento metódico sobre a qual pode, por princípio, erguer-se uma psicologia empírica cientificamente rigorosa. A demarcação desta fenomenologia psicológica rodeada do pensamento natural seja talvez conveniente como introdução propedêutica para elevarmos a compreensão da fenomenologia filosófica (Nota 5).
Em síntese, foi com as análises fenomenológicas da consciência transcendental que Husserl chegou a uma concepção de Psicologia Fenomenológica (Nota 6), pautada na necessidade de primeiro esclarecer a natureza da vida psíquica, as estruturas vividas concretamente e a totalidade dos modos de consciência psíquica; não como uma psicologia empírica em suas relações com o físico (como se orientava a psicologia da época), mas como uma psicologia pura, que investiga as vivências psíquicas per si e que transcende a relação psicofísica: “A pura psicologia não conhece justamente senão o subjetivo, e admitir aí como existente algo de objetivo é já dela ter aberto mão” (Nota 7).
Com este projeto de uma Psicologia Fenomenológica, tem-se a fundação de uma “nova psicologia”, que não se confunde com qualquer “abordagem” da Psicologia" (seja esta antiga ou nova), mas que encontra eco em qualquer uma destas, visto serem, cada qual, uma “perspectiva”.
Neste esforço gigantesco, Husserl se fez acompanhar de um conjunto igualmente grande de colaboradores, de continuadores, mesmo de críticos e de novos pesquisadores, cada qual tomando para si temas e objetos diversos: Alexander Pfänder, Erich Jaensch, David Katz, Edgar Rubin, Karl Bühler, Albert Michotte, Aron Gurwitsch, Adolf Reinach, Moritz Geiger, Hedwig Conrad-Martius, Dietrich Von Hildebrand, Jean Hering, Edith Stein, Roman Ingarden, Max Scheler, Nicolai Hartmann, Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty, Paul Ricoeur, Pierre Thévenaz, Ludwig Landgrebe, Gerda Walter, Karl Jaspers, Ludwig Binswanger, Daniel Lagache, Antoine Vergote, Marvin Farber, Eugène Minkowski, Erwin Straus, José Ortega y Gasset, e tantos outros.
Esta lista – obviamente não extensiva – apenas nos serve para lembrar do propósito, aqui, dessa nossa proposta (no esteio da proposição originária husserliana), qual seja, abrir campos, sem a prerrogativa de esgotar discussões; ampliar debates, sem cair em dogmatismos; criar novos espaços, sem esquecer a pluralidade e a diversidade. Esse é o “espírito” de uma Psicologia Fenomenológica, que pretendemos desenvolver com esta associação.
Notas
(1) Boring, E.G. (1929). A History of Experimental Psychology. New York: Appleton Croft Inc. Wolman, B.B. (1968). Teorías y Sistemas Contemporáneos en Psicologia. Barcelona: Ediciones Martinez Roca. Marx, M.H. & Hillix, W.A. (1990). Sistemas e Teorias em Psicologia. São Paulo: Cultrix. Jacó-Vilela, A.M.; Ferreira, A.A.L. & Portugal, F.T. (2005). História da Psicologia. Rumos e Percursos. Rio de Janeiro: Nau Editora.
(2) Chateau, J. (s/d). As Grandes Psicologias na Antiguidade. Lisboa: Europa-America. Penna, A.G. (1991). História das Idéias Psicológicas. Rio de Janeiro: Imago. Araujo, S.F. (2010). O Projeto de uma Psicologia Científica em Wilhelm Wundt. Uma Nova Interpretação. Juiz de Fora: UFJF. Araujo, S.F. (2012) (Org.). História e Filosofia da Psicologia. Perspectivas Contemporâneas. Juiz de Fora: UFJF. Massimi, M. (2016). História dos Saberes Psicológicos. São Paulo: Paulus.
(3) Araujo, S. F. (2013). O Manifesto dos filósofos alemães contra a psicologia experimental: introdução, tradução e comentários. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 13(1), 298-311. Recuperado em 27 de março de 2019, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812013000100018&lng=pt&tlng=pt .
(4) Husserl, E. (2012). A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental. Uma introdução à Filosofia Fenomenológica. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária (Publicado em 1954), p. 249.
(5) Husserl, E. (1990). El artículo de la Encyclopaedia Britanica. Mexico: UNAM (Original de 1927), p. 59.
(6) Husserl, E. (2001). Psychologique Phénomenógique (1925-1928). Paris: Vrin.
(7) Husserl, 1954/2012, p. 209
Indicações de Leitura
Bello, A. A. (1998). Introdução à Fenomenologia. Bauru: EDUSC.
Goto, T.A. (2007). Introdução à Psicologia Fenomenológica – A Nova Psicologia de Edmund Husserl. São Paulo: Paulus.
Husserl, E. (1965). A Filosofia como ciência de Rigor. Coimbra: Atlantida (Original de 1910).
Husserl, E. (2006). Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica. Aparecida: Ideias e Letras (Original de 1913).
Husserl, E. (2007). Investigações Lógicas – Segundo Volume, Parte I: Investigações para a Fenomenologia e a Teoria do Conhecimento. Lisboa: Phainomenon (Original de 1900-1901).
Husserl, E. (2013). Meditações Cartesianas e Conferências de Paris. Universitária: Rio de Janeiro.
Jaspers, K. (1987). Psicopatologia Geral, Rio de Janeiro: Atheneu (Original de 1913).
Merleau-Ponty, M. (1973). Ciências do Homem e fenomenologia. São Paulo: Saraiva.
Spiegelberg, H. (1972). Phenomenology in Psychology and Psychiatry. Evanston: Northwestern University Press.
Stein, E. (2003). La Estructura de la Persona Humana. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos.